“A Lei Geral da Copa, ao constituir, entre outras
coisas, direitos de patente e de exclusividade comercial à Fifa,
viabiliza a reserva, o monopólio de mercados que, juntos, representam
parte significativa de seus lucros”, constatam os entrevistados.
Confira a entrevista. As redes sociais têm sido o palco das reivindicações de torcedores, movimentos sociais e sociedade civil contra o
Projeto de Lei –
PL 2330/11, que dispõe sobre as medidas relativas à
Copa das Confederações Fifa de 2013 e à
Copa do Mundo Fifa de 2014,
que serão realizadas no Brasil. “As redes sociais cumprem um papel
importante de pressão pública e vocalização de demandas da sociedade,
fazendo que com que as mensagens necessariamente cheguem a quem tem que
chegar. Não há como as autoridades ignorarem o poder das redes na
internet e
tomarem decisões alheias
ao que nelas circula. O tuitaço ajudou tremendamente a pautar as nossas
reivindicações na imprensa. Além do mais, quando um tópico chega aos
Trending Topics, ele será imediatamente visto por centenas de milhares de usuários do
Twitter que foram expostos à campanha e entraram na página para enviar mensagens aos deputados”, avaliam
Guilherme Varella e
Thiago Hoshino.
Segundo eles, a internet está sendo usada como um instrumento para
forçar a transparência das negociações e, em função das pressões via
redes sociais, vários pontos do PL 2330/11 já foram alterados.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail para a
IHU On-Line, eles esclarecem os equívocos da
Lei Geral da Copa e enfatizam que ela altera “sumariamente a legislação brasileira, normas amplamente debatidas e, em muitos casos,
fruto histórico de pressão e reivindicação dos movimentos sociais,
para atender a exigências de organismos internacionais como a Fifa e o
Comitê Olímpico Internacional – COI. Entidades, diga-se de passagem,
nada idôneas, como é notório depois de repetidas denúncias e escândalos,
tampouco filantrópicas. São verdadeiras empresas transnacionais, mais
preocupadas com o jogo do mercado do que com os jogos esportivos”.
Guilherme Varella é advogado do Instituto de Defesa do Consumidor – Idec, e
Thiago Hoshino
é mestrando do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade
Federal do Paraná – UFPR e assessor jurídico da Organização Terra de
Direitos.
Confira a entrevista.
IHU On-Line –
Qual a avaliação do tuitaço
contra a Lei Geral da Copa, que aconteceu no final de fevereiro, e da
campanha que está no ar desde novembro do ano passado?
Guilherme Varella e Thiago Hoshino –
O tuitaço mostrou que a sociedade está alerta aos desmandos da
Fifa e
às concessões que governo e Congresso podem fazer para atender aos
interesses comerciais da organizadora do evento. A sociedade está
mobilizada e pressionando para que a organização da Copa não atropele as
leis nacionais e não traga, desde já, um legado negativo ao país.
Movimentos sociais, organizações de defesa de direitos, associações de
torcedores, institutos de defesa dos consumidores, sindicatos,
movimentos de defesa da moradia, todos estão mobilizados contra a
aprovação da
Lei Geral da Copa
e das demais leis que podem violar direitos fundamentais básicos. A
população tem enviado milhares de e-mails aos deputados, pedindo que
modifiquem a Lei Geral, e, devido à pressão, vários pontos já foram
incluídos no texto. No entanto, isso é pouco e a lei continua abusiva.
Assim, a pressão continua e mais milhares de e-mails serão enviados para
os congressistas para que rejeitem o Plano de Lei 2330.
IHU On-Line –
Qual a força das redes sociais para que se aposte em um tuitaço no
intuito de mobilizar a sociedade civil contra a Lei Geral da Copa?
Guilherme Varella e Thiago Hoshino – As redes
sociais cumprem um papel importante de pressão pública e vocalização de
demandas da sociedade, fazendo que com que as mensagens necessariamente
cheguem a quem tem que chegar. Não há como as autoridades ignorarem o
poder das redes na internet e tomarem decisões alheias ao que nelas
circula. O tuitaço ajudou tremendamente a pautar as nossas
reivindicações na imprensa. Além do mais, quando um tópico chega aos
Trending Topics,
ele será imediatamente visto por centenas de milhares de usuários do
Twitter que foram expostos à campanha e entraram na página para
enviar mensagens aos deputados.
Para a coordenação do tuitaço, os comitês populares de todas as
cidades-sede trocam informações com os sindicatos, com o Idec, o
movimento de moradia, e divulgaram o absurdo monopólio da Fifa, o
desrespeito ao
Código de Defesa do Consumidor –
CDC,
as remoções forçadas, o impedimento do direito de greve. E, a partir
disso, esses movimentos têm o dever de constranger publicamente aqueles
que permitirem isso e que votaram contra o interesse público e os
direitos do povo. Para a Copa, a internet já está sendo um instrumento
para forçar a transparência das ações e para mostrar a todos os abusos
que vêm acontecendo.
IHU On-Line –
Em que consiste a campanha
"Fifa, abaixa a bola"? Como entender a afirmação de que o Brasil está se
vendendo para a Fifa com a Lei da Copa?
Guilherme Varella e Thiago Hoshino – A campanha nada
mais é que um instrumento para fazer a voz dos torcedores chegar com
força e tentar se fazer ouvir, tanto quanto os gabinetes de Brasília
ouvem as exigências da Fifa. Em todos os países sedes da Copa do Mundo
há negociações dos governos com a Fifa, e quanto mais fraca a democracia
do país, mas forte serão os abusos da entidade. Os nossos governantes
tem que entender que a mobilização "
Fifa, abaixa bola"
serve para legitimar um enfrentamento mais duro do governo com a Fifa e
serve de justificativa para anular alguns dos piores abusos –
principalmente aqueles em que a própria União assumirá os prejuízos. A
campanha vai continuar até que o PL seja
modificado ou rejeitado.
E, ainda que aprovado, será mantida para publicizar e evitar
desrespeitos maiores que ainda virão. Cada deputado e cada senador que
votar contra o povo e a favor da Fifa será acionado e lembrado. A
campanha não é contra a Copa do Mundo no Brasil. A campanha é pela Copa
do Mundo aqui. Mas de uma forma justa e acessível à sociedade
brasileira.
IHU On-Line –
Quais são os principais pontos críticos e abusos a direitos trazidos pelo Projeto de Lei Geral da Copa (PL 2330/11)?
Guilherme Varella e Thiago Hoshino – Toda a
concepção da Lei Geral é um grande equívoco, tanto do ponto de vista
político como jurídico. É possível afirmar isso diante de três
constatações básicas, que dizem respeito à motivação do Projeto, ao
modus operandi de sua elaboração e tramitação e à sua finalidade.
Em primeiro lugar, é preciso que fique claro: estamos alterando
sumariamente a legislação brasileira, normas amplamente debatidas e, em
muitos casos, fruto histórico de pressão e reivindicação dos movimentos
sociais para atender a exigências de organismos internacionais como a
Fifa e o Comitê Olímpico Internacional – COI. Entidades, diga-se de
passagem, nada idôneas, como é notório depois de repetidas denúncias e
escândalos, tampouco filantrópicas. São verdadeiras empresas
transnacionais, mais preocupadas com o jogo do mercado do que com os
jogos esportivos.
Nesse sentido, a própria motivação para o PL 2330/11 é ilegítima, uma
vez que se baseia meramente em contratos privados com esses entes. O
Caderno de Garantias e Responsabilidades,
por exemplo, que tem servido de
argumento para justificar essas mudanças,
foi entregue em 2007 à Fifa pelo Brasil, sem respaldo, discussão ou
conhecimento da população. Até hoje esses documentos não estão
publicizados, não temos acesso a seu conteúdo integral e não sabemos
afinal a que estamos vinculados.
Uma segunda questão que merece ser mencionada é a forma como estamos
mobilizando um aparato institucional tremendo, em regime de urgência,
para responder aos supostos “prazos” impostos por esses atores. Existem
inúmeras carências muito mais estruturais em nosso país que não recebem
nem uma fração dessa atenção, dessa prioridade, nem tantos recursos
financeiros e humanos. Todo um universo de gestão extraordinário está
sendo criado nas esferas federal, estadual e municipal para suprir a
demanda absolutamente transitória e elitista de promoção dos
megaeventos: secretarias da copa, grupos de trabalho interministeriais,
comissões especiais etc. Com a
Lei Geral não é
diferente: a máquina inteira do Legislativo é pressionada a se submeter a
essa agenda, custe o que custar e ainda que sem debate qualificado,
pois há interesse tanto do Estado como de grandes corporações no tema.
Por fim, quanto à finalidade do Projeto, é nítido que os grupos por ele
beneficiados são poucos.
A distribuição de ônus e bônus ali prevista não é equitativa. Veja, não
afirmamos em nenhum momento que leis não possam ser modificadas, pelo
contrário, essa é a dinâmica cotidiana do poder Legislativo. Contudo, é
inconstitucional esvaziar direitos sociais coletivos e difusos
consolidados, pelo princípio da vedação do retrocesso social. Mais do
que isso, fazê-lo em detrimento do interesse público é atropelar a
própria noção de soberania popular.
IHU On-Line –
Quais serão os prejuízos do PL 2330/11 à sociedade durante a realização da Copa do Mundo de 2014, sediada no Brasil?
Guilherme Varella e Thiago Hoshino – Os prejuízos diretos e indiretos são muitos. Porém, de maneira didática, assinalamos na recente manifestação pública da
Articulação Nacional dos Comitês Populares da Copa os seguinte tópicos:
a) Retirada de direitos conquistados por vários
grupos sociais, como a meia-entrada e outros direitos dos consumidores
(Artigo 26).
b) Restrições ao trabalho informal, comércio de rua e popular durante os jogos (Artigo 11).
c) Obstáculos para que o povo brasileiro possa
assistir aos jogos como achar melhor, com limitação à sua transmissão
por rádio, televisão e internet (Artigo 16, inciso IV).
d) Submissão da União Federal à Fifa por meio de sua
responsabilização por quaisquer “danos e prejuízos” causados ao evento
privado (artigo 22, 23 e 24).
e) Criação de novos tipos penais, com repressão da
liberdade de expressão, da espontaneidade e da criatividade brasileira
(Artigos 31 a 34).
f) Violação do Estatuto do Torcedor em favor do monopólio da Fifa (Art. 67).
g) Risco ao direito à educação pela possível redução do calendário escolar (Artigo 63).
h) Permissão excepcional de venda de bebidas
alcoólicas durante os jogos, retrocedendo em relação à legislação
existente (Artigo 29).
i) Privatização de símbolos oficiais e do patrimônio
cultural brasileiro pela Fifa através de procedimento especial junto ao
Instituto Nacional de Propriedade Industrial – INPI , dando margem a
abusos nas reservas de patente (Artigo 4º a 7º).
j) Infração direta ao
Código de Defesa do Consumidor,
isentando a Fifa de responsabilidade civil (art. 27, I), permitindo
venda casada (art. 27, II) e cláusula penal (art. 27, III), além de
restrição à liberdade de escolha do consumidor (art. 11).
IHU On-Line –
Como a Fifa se coloca diante deste PL 2330/11?
Guilherme Varella e Thiago Hoshino – Como qualquer
grupo que pretende ver seus interesses comerciais assegurados pelo
Estado: continuamente barganhando, pressionado, ameaçando pela sua
aprovação. A
Lei Geral da Copa,
ao constituir, entre outras coisas, direitos de patente e de
exclusividade comercial à Fifa, viabiliza a reserva, o monopólio de
mercados que, juntos, representam parte significativa de seus lucros.
A minuta original do PL elaborada pelo
Ministério dos Esportes e pela
Casa Civil
contemplava muitas outras questões caras à Fifa que, com o tramitar da
proposta, o acirramento das polêmicas e a ampliação da crítica por parte
da população, tiveram de ser descartadas. Isso tem gerado atritos entre
o governo federal e a organização, desembocando nas recentes
declarações malcriadas do secretário-geral,
Jerome Valcke,
ocasionando um estremecimento momentâneo das relações. Porque, aqui,
existe um elemento que ultrapassa o lobby convencional, já que estamos
falando de relações também diplomáticas e sobre um tema que é caro ao
imaginário brasileiro. Mesmo assim as negociações continuam a todo
vapor.
IHU On-Line –
Quais os desafios que o PL 2330/11 apresenta do ponto de vista do
ordenamento jurídico brasileiro?
Guilherme Varella e Thiago Hoshino – Não é preciso
utilizar o eufemismo “desafio”. É mais realista falarmos de “ameaças”.
Desafios devem ser superados, ameaças, evitadas. A
Lei Geral da Copa é
um cavalo de troia que abre perigosos precedentes no ordenamento
jurídico brasileiro. Ela não é a primeira medida e tudo indica que não
será a última a regulamentar o “regime de exceção” para os jogos. Antes
dela tivemos o
Ato Olímpico –
Lei n. 12.035/2009 –, as isenções fiscais federais – Lei n. 12.350/2010, o RDC,
Regime Diferenciado de Contratações Públicas – MP 421/2011.
À frente, o horizonte é igualmente nebuloso com os Projetos de Lei do
Senado n. 394/09 e n. 728/2011 , já acertadamente apelidado, por seus
absurdos, de “
AI-5 da Copa”.
Isso sem mencionar a legislação estadual e municipal em câmbio
constante. Portanto, a lei também não é tão “geral” assim e pode
significar um ensaio para que temas controvertidos sejam aprovados em
caráter provisório e, posteriormente, incorporem-se permanentemente à
legislação.
IHU On-Line –
Qual tem sido o posicionamento das organizações e da sociedade civil
de modo geral diante da Lei Geral da Copa? Quais são as alterações sugeridas para que essa lei atenda às demandas da campanha?
Guilherme Varella e Thiago Hoshino – A mídia, os grandes empresários interessados e boa parte do Estado buscam forjar e reproduzir um falso consenso em torno da
Copa do Mundo 2014, dos
Jogos Olímpicos de 2016 e de toda a sua preparação. Não é verdade que a sociedade esteja de acordo com as inúmeras arbitrariedades em cena.
Sobre essa “legislação de exceção”, como um todo, a intenção dos
Comitês Populares da Copa
é consolidar um levantamento extenso e analítico de todo esse bloco de
medidas, demonstrando e denunciando a engenharia jurídica por trás dos
megaeventos.
Nosso mote central agora é barrar a Lei Geral. Por dois motivos. 1) de modo bastante objetivo, para que a
Copa do Mundo de 2014
aconteça, ela é completamente desnecessária. 2) se fôssemos emendá-la
no sentido de garantir direitos, simplesmente nada sobraria do texto
original. Uma lei verdadeiramente legítima teria de ser construída da
base, do diálogo com as comunidades afetadas e com os movimentos sociais
urbanos. No final das contas, teria motivação, objetivos e procedimento
totalmente distintos.
(Por Graziela Wolfart e Patricia Fachin. Texto publicado originalmente em http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/507519-lei-geral-da-copa-um-equivoco-politico-e-juridico-entrevista-especial-com-guilherme-varella-e-thiago-hoshino)