quinta-feira, 7 de julho de 2011

Rei Ricardus

Por Victor Martins*

Um dos meus exercícios preferidos é contrariar minha mãe. É divertido vê-la subindo nas tamancas, como minha avó diria, viva estivesse. A reação dela ao ouvir uma nota 6 para um almoço que ela julga ser 10 é digna de um Oscar por melhor drama. O negócio também vai para discussões mais fervorosas, para assuntos como família ou mesmo postura de vida. Ou mais ou menos relevantes, como futebol.

Eu ainda tinha menos de 10 quando, no fim daquele jogo da Copa do Mundo, minha mãe correu para se sentar no banco redondo e dedilhar no piano a música de tango à qual a maioria está acostumada. No apito final, ela fez sua melodia e esfalfou-se com a desclassificação do Brasil em 1990. Não eram bem essas as palavras, mas como conheço a figura, certamente era algo como “mas não são os bons, os melhores?”, e caía na risada, congraçada e realizada pela eliminação do time do qual não suportava a soberba e a falta de humildade.

Até hoje é assim. E se aparece a tal figura em alguma reportagem, digamos que desgraçado seja o predicado mais leve. Jeitão dela.

De certa forma fui influenciado por aquilo, mas no confronto dos meus ideais de provocá-la, minha aversão pela Seleção acabou em um meio termo. Preferi torcer pela Dinamarca. É bem mais legal. Na Copa de 1998, aos 2 minutos de jogo, minha mãe e eu fizemos eco na sacada de casa com o gol de Jorgensen. No fim do jogo, lembro da lágrima furtiva pelo 3 a 2 contra e ela lá, malditos, filhos da puta, não vão ganhar essa merda. Em 99,9% das vezes, numa estatística com certa margem de erro, sou aloprado pelos insucessos, mas vida que segue. Eu escolhi para quem torcer. Não fui tomado por um patriotismo ou nacionalismo falso que só existe em períodos de quatro anos. No intervalo, há uma catarse e uma letargia coletivas.

A pátria em chuteiras. Nelson Rodrigues reavaliaria isso. O homem que comanda a pátria em chuteiras é o mesmo da época daquele tango. Fisicamente não mudou muito. Juridicamente, um tanto quanto. Em negócios faraônicos, inverteu dunaS para formar uma empresa, da qual formou sítios e mansões. Lavou as mãos e molhou. Saiu impune. Na nossa republiqueta, fez-se rei e como escudo pôs a principal emissora do país. Ali ganhou mais do que o quarto poder nas mãos, e qualquer sujeira vem sido varrida para debaixo do gramado, mesmo se o estádio em volta esteja longe de ser erguido.

O Brasil ganhou a Copa. Ganhou? Quedê? O que o Brasil ganhou com a Copa, se a Copa indica um estado de exceção em prol de uma entidade esportiva? A tal figura ganhou com a Copa, e com ela no bolso, seu reinado virou absolutista. Luis XIV tem inveja no mundo paralelo da tal figura que cooptou gente ministerial e de outras casas oficiais da republiqueta e encheu de brindes e mimos seu fiel escudo de microfone. O futebol virou um ciclo de cifrões oriundos da imoralidade.

Eu me sinto bem à vontade para falar do pouco poder desta quarta via por pertencer a ela. Sinto certo asco. Da fraqueza e do pouco empenho que se faz para levantar fatos e investigar, da subserviência e da comodidade que se inclinam diante da presença do ‘doutor’ — aliás, é fácil ser doutor sem ter o título. Não é só no futebol, não, doping e Tarso Marques não me deixam mentir. As tantas que tentam agir só o fazem por chantagem ou vingança. É o jornalismo conveniente típico das bases dos amigos de balada que não conseguem ficar com uma garota. Se eu não pego, ninguém pega. As exceções acabam sendo tão poucas que o barulho pouco incomoda e é abafado porque aquela que deveria ajudar e zelar vê o Brasil como Springfield. E a gente acaba admirando e se perguntando como não temos profissionais como Andrew Jennings, o jornalista da BBC que mexe com a vida desta quadrilha que, como fim, acaba mexendo com a minha conta, que não tem isenção fiscal nem mesmo se faltarem alguns centavos.

Não que tivesse alguma dúvida de que tipo de caráter se trata, mas li com atenção hoje à reportagem da ótima Piauí hoje. Não tenho língua papal nem muitas papas, mas a vulgaridade do ‘doutor’ é espantosa. Não a vulgaridade, sei lá. É a empáfia, a arrogância e a prepotência, o escárnio e o deboche. A tal figura só temeria e baixaria seu topete gris se fosse mal falada no ‘JN’. Mas o tio que lá edita escolhe as principais notícias tal como seus seguidores fazem com suas gravatas, já que sabe bem que as portas daquela casa estão sempre abertas e convidativas. A tal figura aí é a expressão máxima da banana que a personagem de Reginaldo Faria dá ao Brasil no fim de ‘Vale Tudo’, novela da época do tango que repassa nos dias atuais. A banana vai ser dada daqui quatro anos, num teórico pós-Copa em que provavelmente a parte de exceção da imprensa vai estar debatendo o rombo, os elefantes brancos e a ausência dos legados da competição. A banana é, por que não, posta virtualmente em nossos rabos. Há quem goste e que ajude a descascar. Tem gosto pra tudo. As chuteiras da pátria ajudam a enfiar.

Qualquer cidadão que se preze e que se julgue brasileiro — não o brasileiro que só lembra do país para torcer por 11 barbados —, deveria ser completamente contra a realização desta Copa, que é apenas um subterfúgio para movimentação de bilhões sem o mínimo de retorno para nosso futuro cotidiano. Quem se une em marchas para maconha, liberdade, homossexualidade ou religião ou faz qualquer flash mob para imitar a cena das cataratas do Niagara do Pica-Pau deveria ter motes mais civis para exigir transparência de toda essa gente que ronda a tal figura, principalmente ela. Ou ainda, quem espera acontecer — ou, numa linguagem adaptada, quem caga montão — pelo menos deveria parar de torcer para este Brasil. Quem apoia fervorosamente compactua com a figura nefasta que é dona imperial deste suposto time e deste suposto país. Pena que não vai rolar. Porque o Brasil não deu certo. Nunca deu certo. Não há de dar em três ou quatro anos.

Do lado de cá, sigo sendo Dinamarca e me vejo na difícil situação da admissão de que minha mãe esteve sempre certa. Vou dizer a ela o 10 que, enfim, merece no almoço que faço questão de preparar no fim de semana, ao som de Gardel.

Victor Martins é Jornalista, e Editor-executivo do site Grande Prêmio e da revista on line Warm Up. Texto retirado de
http://colunistas.ig.com.br/victormartins/2011/07/07/rei-ricardus/


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